Uma marca humana

Minha pulseira da peste

Quando Cecilia nasceu, por causa da internação, só tomou a vacina BCG com um mês de vida. Foram dias de aflição, esperando minha filha receber aquela picada indelével, a primeira, a cicatriz, a vacina do nascimento, da entrada no mundo.

Passei a infância com a certeza de que aquela era uma marca que nos era comum, um signo da/de humanidade; da minha altura, só via como iguais os meus iguais: outras crianças, como eu, nascidas num país que, apesar de tudo, tornou obrigatória a proteção desde meados dos anos 1970.

Só adulta me dei conta que as gerações mais velhas não carregavam/não carregam a marca da picada no braço. Só há pouco descobri, no meio da peste, que nem todos os países são como o Brasil, que obriga seus cidadãos a aderirem a esse pacto coletivo que é a proteção contra a tuberculose. Quem é humano?

Hoje fui vacinada, logo embaixo da marca da BCG, a primeira, pertinho da segunda. Três tatuagens, uma apenas o rastro.

Agora à noite, já não se vê o furo que Helena, gentilíssima, fez no meu braço. Mas eu sei que está aqui. Me senti nascendo de novo, e ganhei até uma pulseira verdesperança, à moda da etiqueta dos bebês na maternidade, ainda guardo a de Cecilia na caixa, vou guardar essa também.

Hoje, 12 de junho de 2021, chegou a minha vez na fila do excesso de beleza, que poderia ter qualquer outro critério e ainda seria injusta. Virei jacarina* (jakarina).

Fui vacinada porque sou professora, mas é injusto ter me vacinado antes das trabalhadoras domésticas. É injusto ter me vacinado antes dos trabalhadores rodoviários. É injusto viver num país sempre mal das pernas que em 40 anos conseguiu romper um dos pactos que nos segurava por um triz. É injusto ter me vacinado quando tem gente que amo sem ter sido vacinada. É injusto eu ter direito e outros seres humanos não (E pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos).

Uma injustiça que nenhum de nós cometeu, estão cometendo, criminalmente contra nós, no Brasil mais que em tantos lugares.

Uma injustiça que nós, humanos, cometemos antes contra um planeta que agoniza, e ainda assim persistimos na insistência em predar, extrair, garimpar, arrancar, sugar tudo, deixar a natureza sem espaço e invadir nossos corpos, depois os bilionários colonizam marte.

Uma desilusão diária que nunca passa, nada nos deixa completamente alegres, porque as pessoas perdem pessoas, porque as famílias estão diminuindo antes da hora devida, porque não podemos prantear juntos, mãos dadas, porque tem gente que se recusa a nos dar as mãos em um acordo social de nos protegermos como dá, com a vacina, com as máscaras.

Um amargor na boca que não há água que faça passar porque não há políticas, não há um plano de vida, há uma política da morte e ela anda de moto.

Faz tempo que temos visto esses fios muito frágeis se rompendo ao nosso redor, o que vai restar pra minha filha, que foi vacinada contra a BCG, de quem cuidamos tão bem, a quem amamos tanto? Como diria Caetano, cuja voz me acompanha na cabeça, “algo se quebrou. Está se quebrando”.

Quando a agulha saiu da minha pele, chorei um pouquinho.

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