Tijolo por tijolo

Ontem Cecilia ouviu, na Globonews, alguém falar da família do novo presidente dos EUA, Joe Biden, e da marida* dele, dra. Jill Biden. Ela tomou um susto.

“Ué, que engraçado! Eles têm o mesmo sobrenome, Biden e Biden. Eles eram da mesma família?”

Expliquei a ela que, antigamente, quando se casava, a mulher adicionava o sobrenome do marido ao dela no final do nome completo. Disse que Biden era o sobrenome de Joe e, quando Jill se casou com ele, virou Biden também.

Enquanto falava, pensei como o mundo muda a cada dia, a cada pequena ação que fazemos, e que aos poucos essas ações formam tsunamis, com ondas que fazem tremer o futuro (isso é otimismo e e esperança diante de um presente distópico; é o que nos resta).

Eu não tenho o nome do marido. Aliás, no papel nem é marido, porque sequer nos casamos; assinamos um papel de outro tipo no cartório.

É companheiro, comparsa, parceiro. Está aqui ao meu lado. Mas eu sou eu, ele é ele. Meu nome é meu, o nome dele é dele. Quando fomos escolher e formar o nome completo de Cecilia, eu tirei no papelzinho qual dos meus sobrenomes iria passar, e nós dois decidimos juntos a ordem dos sobrenomes, pela sonoridade, não pela patrilinearidade.

(Essa posse patriarcal das mulheres, sobre a qual Gayle Rubin discorre tão amargamente bem, também se aplica[va], muitas vezes, às filhas. Quando meu pai foi me registrar, no início dos anos 80, foi obrigado a colocar o que o escrivão do cartório considerou um “nome de família”. Desde menina, nunca usei esse último sobrenome. Devia ser meu inconsciente feminista me rebelando contra essa arbitrariedade e contra a lei dos Homens.)

Mais importante: minha filha não internalizou a ordem patriarcal de transmissão do nome, que transformava legalmente a esposa em posse do marido por meio da constituição do “nome de família”. Para ela, o normal é que cada um tenha um nome, uma posse de si mesmo, enquanto compartilha a vida com alguém pelo tempo que quiser. E que a junção de nomes, se houver, seja uma escolha, não uma imposição de submissão da mulher à lei do masculino – o símbolo da saída da família do Pai para a entrada na família do Marido.

Na maioria dos dias, eu gostaria de destruir o patriarcado de uma vez, quebrando tudo. Infelizmente, a história mostrou que não será assim. Mas a utopia nos ensina que será. Então, temos de quebrar tijolo por tijolo essa parede apodrecida. E a cada lição que nossos filhos e nossas filhas recebem dos nossos cotidianos, a cada vez que negamos o patriarcado e suas normas, estamos dando martelos para que elas quebrem esses tijolos, com força.

É por isso que tanta gente tem medo de nossas filhas: por isso querem controlá-las, calá-las, deixá-las na ignorância de seus corpos, seus direitos, seu poder.

*marida é como Cecilia define o feminino de marido. Muito mais igualitário que marido e esposa, por isso aqui em casa só nos referimos assim a casais heterossexuais.

Deixe um comentário