Notas sobre crianças, Globo, Netflix e pânico moral

Ontem, domingão, a Globo exibiu na Temperatura Máxima o filme Máquinas Mortais, uma distopia sci-fi meio genérica produzida por Peter Jackson. O filme passou na tevê aberta entre 1 e pouco e 2 e meia da tarde. A classificação indicativa do filme é de 14 anos.

Cena de Máquinas Mortais, um filme mais ou menos cuja exibição ilustra o clima atual

Até alguns anos atrás esse filme só poderia passar na tevê aberta depois das 21h, por conter algum(ns) desses elemento(s): “morte intencional; estigma/preconceito; nudez; erotização; vulgaridade; relação sexual; prostituição; insinuação do consumo de drogas ilícitas; descrições verbais do consumo e tráfico de drogas ilícitas; discussão sobre “descriminalização de drogas ilícitas”. As únicas programações liberadas pra passar em qualquer horário eram as livres e as de 10 anos.

Mas em 2016, o Supremo Tribunal Federal validou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) do PTB (o partido do Roberto Jefferson) que julgou  inconstitucional um trecho do artigo 254 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Justamente o trecho que previa multa às empresas de radiodifusão que exibissem programação fora do horário autorizado pela classificação indicativa, sob o argumento de que seria censura prévia.

A ação teve o peso fortíssimo da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão, a Abert, associação que reúne as emissoras abertas, em especial da Globo. A Globo detesta a classificação indicativa e sempre fez lobby contra. Vira e mexe solta notinhas em colunas dos veículos da empresa ou publica matérias questionando os critérios, gritando “censura” sempre que pode — e sempre que é repreendida. Durante muitos anos teve problemas com novelas, sobretudo das seis, e com o Ministério Público Federal. Em 2016, o lobby ganhou no STF e o ECA perdeu um de seus mecanismos mais potentes de checks and balances. Por isso, hoje podemos ver um feminicídio no início da tarde de domingo em família.

O argumento mais simples pra rebater o que eu disse acima é: “Ora, desliga a tv”. E seu corolário: “Seja uma boa mãe, tire sua filha (seu filho) da frente da tv”. É um argumento cretino, falsamente ingênuo e patriarcal porque: 

1) Ignora que vivemos em uma sociedade midiatizada em que o audiovisual é cada vez mais ubíquo, ao mesmo tempo que os espaços públicos de lazer são mais raros e inacessíveis, e os espaços privados custam caro; 

2) Joga no colo das famílias toda a responsabilidade e não problematiza o fato de a emissora escolher exibir esse conteúdo; 

3) Não leva em conta o fato de que o cuidado com os filhos recai majoritariamente sobre as mulheres, que realizam jornada dupla ou tripla e, em muitas casas, a TV (assim como celular/tablet) é, sim, uma babá eletrônica para as crianças, porque não há dinheiro, tempo, companheiro, família, para ajudar;

4) Interpela apenas as mães pela responsabilidade sobre o que filhas e filhos vêem (nem preciso me alongar aqui).

É um argumento, também, ERRADO. Constitucionalmente, o Brasil estabelece uma proteção tripartite e prioritária a crianças e adolescentes. Tá lá no artigo 227:  “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” 

(O STF entendeu que a dita censura prévia (pfff, que não é o caso) seria um direito mais importante que a prioridade constitucional às infâncias e adolescências. Pois é. Podiam bem riscar o termo “prioridade” do artigo, com o desmonte que fizeram, que não faria diferença.)

Logo, constitucionalmente não é responsabilidade única das famílias — leia-se mães — garantir a exposição a  conteúdos adequados na televisão a meninos e meninas. É função também do Estado, por meio de mecanismos como a classificação indicativa, as fiscalizações do MP, políticas públicas; e da sociedade, por meio de pressão, boicotes, iniciativas populares. Se a Globo exibe uma cena de feminicídio na tarde de domingo, o problema não é só da família cuja criança assiste, nem só da Globo que mostra, mas de toda a sociedade. Não dá pra se eximir, fechar os olhos e culpar a mãe que, com recortes de classe, raça, pode estar subempregada, endividada, cansada, sobrecarregada, sozinha, desamparada. E ainda tem de ter literacia midiática o suficiente para compreender os mecanismos de classificação indicativa (é patriarcado que você quer? Toma, é assim que funciona).

A esse respeito, vale ler também (e se chocar com) o código de ética da radiodifusão brasileira, que define a forma da programação infantil: “serão preservadas a integridade da família e sua hierarquia, bem como exaltados os bons sentimentos e  propósitos, o respeito à Lei e  às autoridades legalmente constituídas, o amor à pátria, ao próximo, à natureza e os animais.” Quase um lema de governos por aí… Mais importante, logo à frente, o texto estabelece, no artigo 15, os horários de exibição e os conteúdos apropriados a cada um deles, de maneira próxima (mais tosca, porém) à da classificação indicativa. Parece que nem os filiados seguem. Ou ligam para o código.

Mas a Globo é uma concessão de TV pública e tem contas a prestar ou perderia (em tese) o direito de operar. E as plataformas? 

Ainda que não sejam concessões, o mesmo raciocínio da prioridade e proteção tripartite vale para as plataformas. Não à toa, os perfis infantis costumam exibir conteúdos liberados para até 12 anos. A questão é que, como sistemas fechados de consumo, é MUITO mais difícil controlar o que meninos e meninas assistem. Esse é um dos problemas das plataformas: a opacidade com que operam, sempre no nível individual, fechadas às verificações, refratárias a quaisquer regulações.

É assim que o capitalismo neoliberal trabalha: desarticulando coletividades, isolando cada sujeito, impedindo a formação de redes de sociabilidades (mas incentivando as redes algorítmicas de consumo e afetos). Como fiscalizar, como navegar?

Nesse regime de opacidade, é fácil criar pânico moral e ser capturado pelo neoconservadorismo oportunista. Caso recente: a série Round 6, da Netflix, um produto com classificação indicativa de 16 anos (logo, ausente de qualquer perfil infantil). Ou seja, crianças e adolescentes que assistem à série burlam as regras. Culpa das mães, claro.

Cena de Um Conto sombrio de Grimm, apropriado pelo neoconservadorismo pra criar pânico

Caso recentíssimo: mães reunidas em grupos de whatsapp (essa praga contemporânea) reclamando da minissérie Um Conto sombrio de Grimm, lançada bem no relouin com classificação de 12 anos, e que contém cenas como decapitação. Nesse caso, o problema estaria no conteúdo em si, e os anjos infantis estão expostos a algo inequivocamente inadequado. Culpa da classificação indicativa. Ou da Netflix, claro.

Só que não. Primeiro, à classificação. O governo Bolsonero está buscando rever a política de classificação indicativa brasileira, sem a participação da sociedade civil que ajudou a construí-la. Isso é uma bomba anunciada, porque o neconservadorismo que norteia as decisões culturais desse desgoverno é extremamente danoso. E a política de classificação indicativa é boa. Foi instituída por gente séria, tem mecanismos interessantes, transparência de aplicação, rotinas verificáveis. Não deve ser reformulada a troco de nada, mas ter seus moralismos apontados, como na questão das drogas ilícitas ou da heteronormatividade que a permeia, para aprimoramento contínuo.

Mas é uma boa política, que prevê mecanismos para rever a classificação de um produto e punir empresas que desrespeitam a política. Nenhum deles inclui correntes de zap e exortações à culpa materna, mas ações coletivas por direitos, como denúncia ao MP. Tudo que as plataformas e o capitalismo detestam.

Agora, à adequação do conteúdo. A complexidade da classificação está em construir um jogo entre o que é exposto e como é exposto; entre agravantes e atenuantes. Também leva em conta o caráter realista ou não do que está sendo exibido. Ou seja, nunca houve uma vedação à violência em si, mas à forma como ela é engendrada na narrativa audiovisual e os sentidos que produz.

A classificação vai além do simplismo — e do pânico moral — ao apontar um conteúdo como inapropriado, e percebe que existem nuances no que meninos e meninas podem ver. Essa concepção também envolve uma compreensão da infância que vai além de uma reificação de crianças como anjos puros, seres passivos corrompidos pela imoralidade da comunicação, da sociedade adulta, que recebem acriticamente conteúdos despejados sobre elas.

Crianças são sujeitos, sujeitos desejantes e pensantes, que negociam com aquilo que consomem a partir de seus lugares de fala, das posições que ocupam, a partir dos modos pelos quais as famílias, as escolas, apresentam e debatem com elas temas que circulam socialmente. São sujeitos que dialogam com fantasias, medos, interdições e traumas, de maneira mediada e consciente, e muito, a partir das redes de afeto que as envolvem.

E é aí que precisamos sair da chave do individual, da culpa-da-família (da-mãe), e pensar coletivamente. Estado e sociedade devem garantir educação midiática a crianças, adolescentes e a adultos para que exerçam visionamentos críticos, engajados, cidadãos. Para que famílias sejam capazes de atuar como mediadoras entre os conteúdos e as crianças; para que as escolhas sejam informadas, ponderadas. Para que a classificação indicativa e seus mecanismos (não só suas etiquetas) sejam compreendidas e debatidas socialmente. Para que saiamos da gritaria para a reflexão.

As famílias precisam ter espaços de debate sobre conteúdos. Espaços onde possam se informar, que possam ajudar a ancorar suas escolhas. Iniciativas como observatórios de mídia, formações em educação midiática, guias de conteúdo, enfim. Espaços sociais de debate e reflexão precisam estar presentes para formar uma esfera pública capaz de atuar positivamente na relação das crianças com o audiovisual e com as mídias. Isso, gente, não é tarefa das mães; nem da Globo; nem da Netflix; nem de um grupo de trabalho governamental bizarro em separado. É tarefa de todos os atores sociais, do Estado, das famílias, das empresas, das plataformas. Prioridade absoluta significa isso: ninguém está desimplicado das questões de proteção à infância e adolescência.

Isso não quer dizer que crianças devem assistir a Round 6 ou a Um Conto Sombrio de Grimm, ou a qualquer coisa. Também não significa que a classificação dos produtos está correta. Nem errada, sei lá. Significa apenas que devemos complexificar nossa compreensão sobre a mídia, sobre o papel que ela exerce nas famílias contemporâneas, sobre a dimensão que tem na infância (e sobre os motivos desse dimensionamentos). 

Devemos complexificar também nossa compreensão sobre a infância e sobre a mediação dos produtos da cultura. Devemos educar midiaticamente todos os atores sociais (a desinformação que grassa no Brasil é outro indicativo de quão urgente essa medida é). Devemos aprimorar os mecanismos da classificação indicativa e lutar coletivamente para sua reimplantação. Devemos combater o pânico moral que costuma atravessar muitas discussões sobre mídia e infância, pois são armadilhas colocadas à nossa frente pelo neoconservadorismo. Se caímos nelas, passam a servir de pretexto a retrocessos (como a tal rediscussão da classificação indicativa pelo grupo no poder) ou a ser apropriadas pela extrema direita.

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